C U R I O S I D A D E S
Depois que se passa por Cizur Menor há algumas cidadezinhas mas a principal localidade é Puente la Reina. É ali que todos os caminhos se encontram e é a partir dali que o Caminho é só um. Há uma placa que diz que "a partir deste ponto todos os caminhos se tornam um só" . Puente la Reina tem como ponto alto a ponte de pedra construída sobre o Rio Arga, e a estátua do peregrino. A partir dali se ouve muito a frase "con pan y vino se hace el camino" .
Esse lugar faz parte da mitologia do Caminho. É uma cidade abandonada, um conjunto de ruínas, normalmente habitadas por cães selvagens da região. Ali também, conta-se, habitam espíritos e sobre o lugar paira uma maldição medieval. Nesse lugar acontecem combates espirituais e assim foi comigo. Além das implicações espirituais em se atravessar este lugar há também o risco de ser atacado pelos cães. Toda pessoa que tenha alguma sensibilidade sente uma opressão inexplicável ao entrar no lugar, e essa opressão desaparece quando se sai de lá. Tive de pernoitar perto da saída da cidade. A lenda conta que séculos atrás Foncebadón era um cidade próspera e até havia uma hospedaria que era usada pelos reis da Espanha quando estavam peregrinando até Santiago. Antigamente os reis da Espanha eram coroados com as bençãos de Santiago, que é o padroeiro da Espanha. Contam que numa ocasião um cigano chegou à cidade à noite e pediu hospedagem, que lhe foi negada por ser cigano. Não tendo outro lugar onde ficar, ele deitou-se na porta da igreja. O padre exigiu que ele se retirasse dali e ele recusou-se, dizendo que não poderia ser expulso da porta da casa de Deus, mas o padre chamou os cidadãos que, já naturalmente rancorosos com relação a ciganos, espancaram o cigano com requintes de perversidade, na presença da cidade toda e com a aprovação do padre. Já muito machucado, amarraram-no e o queimaram vivo em frente a igreja. Antes de morrer ele lançou uma maldição, dizendo que aquela cidade iria definhar até morrer e que nunca mais iria se levantar, e que ninguém mais viria morar ali, enquanto os moradores iriam embora e não mais voltariam. Se é verdade não sei, mas o fato é que o lugar foi abandonado e tem um clima muito deprimente. Há uma avenida principal que atravessa a cidade e passando por esta avenida se vê as ruas transversais, igualmente abandonadas. Fiquei imaginando aquelas ruas movimentadas como as ruas de outro povoado. Era uma visão triste, como é triste a visão de qualquer cidade abandonada.
LOGROÑO :
Em Logroño há uma belíssima igreja, a de Santiago el Real, onde há uma estátua curiosa : a de Santiago Matamoros. Santiago está a cavalo de espada em punho, matando mouros (árabes). Isso é uma lenda (ou será que não ?) que diz que nos tempos da ocupação árabe na península ibérica era dever dos reis da Espanha lutar contra o invasor e perto de Logroño (uns 15 ou 16 km) houve a famosa Batalha de Clavijo onde dizem que num momento de quase derrota dos espanhóis eles invocaram Santiago (seu padroeiro) e ele veio, a cavalo e espada na mão, matando qualquer árabe que estivesse no caminho. Até hoje o grito de guerra nas Forças Armadas da Espanha é Santiago Y a ellos , que eu acho que dá pra traduzir como "Santiago neles !"
STELLA:
A quase 1 km da cidade de Stella está o povoado de Ayegui onde há uma fábrica de vinho onde ocorre uma coisa curiosa. Em frente à fábrica há uma belíssima bica trabalhada e com o símbolo do Caminho (a concha), e nessa bica há duas torneiras douradas. Uma jorra água, e a outra jorra vinho, produzido ali mesmo, excelente, por sinal. Os peregrinos e qualquer um que passe por ali pode e deve se servir à vontade. Há uma placa que diz que se deve provar o vinho local e se gostar lá na fabrica ele está a venda. Está escrito na placa : "Peregrino! Si quieres llegar a Santiago con fuerza y vitalidad de este gran vino echa un trago y brinda por la felicidad. Fuente de Irache, Fuente del Vino. " Um pouco mais para baixo há outra inscrição em forma de verso que diz : " Normas de uso : a beber sin abusar / te invitamos con agrado / para poderlo llevar / el vino ha de ser comprado." Mas acontece que não há ninguém cuidando a bica e eu fiquei imaginando os abusos que deveriam ocorrer com pessoas que viriam com baldes para levar vinho de graça. Mas nós, peregrinos, apenas tomamos um pouco porque não é bom caminhar de porre. Naquela noite, no refúgio, conversávamos sobre outros assuntos e me ocorreu comentar esse episódio das bicas. Perguntei se não havia o risco de pessoas levarem quantidades exageradas de um vinho tão bom para vendê-lo. Os espanhóis responsáveis pelo refúgio me olharam de um jeito estranho como se eu tivesse dito uma heresia, e me responderam perguntando por que eu achava que alguém faria isso. Eu disse que se era de graça e não havia ninguém cuidando nada impedia que se roubasse vinho. Eles se entreolharam e me disseram que isso era uma coisa inconcebível porque se acontecesse isso a fábrica teria prejuízo e acabaria fechando, e isso traria desemprego a centenas de famílias que vivem da renda daquela fábrica, e que portanto, ninguém deseja desemprego de forma que as pessoas não tiram vinho com essas intenções de roubo. E disseram que além disso, era estranho, para eles, imaginar alguém roubando um vinho que era oferecido de graça. Fiquei imaginando uma boca dessas no Brasil...alguns iriam de carro-pipa, e que se danem os empregos dos funcionários da fábrica que vai fechar por causa do prejuízo. Os espanhóis tem uma consciência nacional e uma mentalidade muito diferente da nossa.
SANTO DOMINGO DE LA CALZADA :
Na igreja de Santo Domingo de La Calzada há um galinheiro próximo do altar. Isso é algo que não se vê todo dia, pelo menos eu nunca havia visto. Há um galinheiro suspenso na parede, todo trabalhado, muito bonito, e dentro há um galo e duas galinhas, todos brancos. A lenda diz que há séculos, passou por ali uma família de peregrinos que ia para Santiago, e se hospedaram em uma pousada. Uma moça, filha do dono da pousada, gostou muito do filho daqueles peregrinos, e desejou ter intimidades com ele, que recusou. Furiosa, ela escondeu um cálice de prata na mochila do rapaz e logo que partiram ela denunciou o "roubo" às autoridades. O rapaz foi preso, julgado, condenado e enforcado no mesmo dia, o que indica que o sistema penal da época era muito rápido (talvez porque ainda não havia advogados). Não tendo sido atendida nas suas súplicas a família do rapaz teve de seguir viagem. Muitos quilômetros depois o pai teve uma visão, na qual o rapaz continuava vivo, apesar de pendurado na forca, porque Santiago o estava segurando pelas pernas. O pai do rapaz voltou correndo e foi falar com o governador, que estava jantando uma galinha assada. O pai explicou sua visão, que o filho era inocente e por isso Santiago não deixava que ele morresse daquela forma, etc.; o governador ouviu e respondeu: "O que você está me dizendo é bobagem, homem. Ele foi enforcado há várias horas. O seu filho está tão morto quanto esta galinha que eu estou comendo aqui." E nesse momento a galinha assada levantou-se e começou a cantar na mesa. Isso foi entendido como um sinal divino, todos foram ao local e o rapaz estava realmente vivo,e então foi libertado. Em respeito ao milagre foi erguida a igreja e no interior dela foi posto o galinheiro. O ditado local diz : "Santo Domingo de la Calzada, donde cantó la galina después de assada" . Também diz a tradição que se o galo cantar no momento em que o peregrino entra na igreja ele terá um sorte excepcional. As pessoas tentam juntar do chão as penas que caem do galinheiro, como uma espécie de amuleto.
CEBREIRO:
Eu considero o Cebreiro o ponto alto do Caminho de Santiago. É um lugar onde a Magia está no ar e é difícil verbalizar o que sente quando se está lá. O Cebreiro é um lugarejo, com poucas casas e uma capela, no alto de uma elevação íngreme. As casas são chamadas pallozas, palhoças, por causa de suas paredes de pedra e telhado de palha. E há a capelinha, onde no altar está guardada a prova de um milagre que teria corrido a muito, muito tempo. Havia um padre que só gostava de celebrar missa para multidões, mas um dia, por causa da chuva, apareceu apenas um homem. E ele dificuldades para chegar ali, e chegou molhado, sujo de barro e com a roupa rasgada por espinhos, mas veio assistir a missa. O padre ficou irritado por ter de celebrar a missa para apenas uma pessoa, e rezava a missa e deixava escapar sua descrença no fato de que Deus fosse gostar daquela missa para um só fiel. Então, na frente dele, a hóstia se tornou carne e o vinho se tornou sangue. Estava claro que Deus havia aceito aquela missa, mesmo sendo para apenas uma pessoa de fé. Ainda hoje, a carne e o vinho foram mantidos e protegidos no altar. O Cebreiro já era conhecido dos romanos que na conquista da Iria Flavia chamavam o Cebreiro de Porta da Galícia. O Papa Calixto II, que reconheceu a santidade do Caminho menciona o Cebreiro no Codice Calixtino com o nome de Mons Februari. Já os árabes assinalaram o Cebreiro em seus mapas com o nome de Munt Febrair, que depois se chamou Zebruaril, até se tornar Cebreiro. Posso garantir que o lugar é mágico, mais do que qualquer outro ponto do Caminho, mais do que a própria Catedral.
SANTIAGO DE COMPOSTELA :
Na minha opinião, é o arquétipo de cidade medieval. Em Santiago há um perfeito casamento entre o antigo e o moderno de uma forma tão perfeita que impressiona. Uma fusão assim eu só fui ver em Ávila, que fui visitar por curiosidade, pois é o meu sobrenome (descobri até o brasão da familia Ávila). Voltando a Santiago, as ruas da parte velha tem aquele ar nostálgico, que lembra tempos que não voltam mais. São ruazinhas estreitas, de pedra. Um lugar muito inspirador. Mas o que leva um peregrino a ir a Santiago é chegar à Catedral. aquela sim é uma maravilha arquitetônica, construída com o trabalho voluntária de devotos vindos de toda Europa, uma construção que levou séculos para ser concluída. Na secretaria da Catedral os peregrinos apresentam a sua Credencial para fazer jus à Compostellana, um diploma que atesta a peregrinação. Também recebem o direito a fazer três refeições no restaurante Reis Católicos. Os peregrinos fazem suas refeições na cozinha, na mesa dos funcionários, as pessoas mais alegres e divertidas que encontrei em Santiago. A comida é excelente. Teoricamente o peregrino também tem direito a hospedagem no "Hostal de los Reyes Catolicos" , um hotel cinco estrelas em frente à Catedral, mas é quase impossível, dado ao grande numero de hospedes. Nesse hotel, que lá é chamado Parador, deve-se fazer reservas com pelo menos 1 ano de antecedência. E na Catedral acontece a Missa dos Peregrinos, quando são lidos os nomes e os países de todos os peregrinos presentes. É um momento que me emocionou demais. O ponto alto é a hora do Botafumeiro. O Botafumeiro é um imenso incensário que é suspenso por roldanas no teto e literalmente voa por dentro da Catedral, espalhando o perfume do incenso. São necessários vários padres para levantar o Botafumeiro. Depois que termina a Missa a gente sente uma sensação de vazio, porque dali em diante os peregrinos já não são mais peregrinos, cada um vai para um lado e se separam. Muitos deles foram meus companheiros de viagem por vários dias, criou-se um vinculo, uma espécie de cumplicidade. Todas as despedidas são emocionantes pois sabe-se que não tornaremos a ver aquelas pessoas. Mas todos trocam endereços, e realmente nos correspondemos. Nas nossas correspondências a gente troca idéias, informações e fotos, pois cada um bateu fotos de um angulo diferente, e cada um fotografou aquilo que lhe pareceu mais agradável. Independentemente do aspecto mágico que me levou a peregrinar, a experiência propriamente dita foi a mais gratificante que já tive em todas as minhas vidas. Se você não percorreu o Caminho de Santiago você ainda não viveu.
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